sexta-feira, 26 de junho de 2020

2 Corintios 11;16 ou Para Que Não Me Mintam

Métodos de suicídio – Wikipédia, a enciclopédia livre

No ano que eu nasci o Muro de Berlin vinha abaixo. No mesmo dia o Botafogo fazia história contra o Flamengo no Maracanã ganhando de um a zero, depois de um jogo tenso na final estadual. Em Pequim, um homem parava diante quatro tanques de guerra no meio da Praça da Paz Celestial, eternizado numa cena que inspirou milhares contra o regime chinês da época. O vídeo mostra ele sendo retirado por dois soldados, nada mais. Nunca mais localizaram o rebelde desconhecido.

O mundo girava intensamente, ainda com uma pequena imagem embaçada de nosso futuro tecnológico e avanços digitais, quando fui “puxado a ferro” – como dizia minha mãe, até que um dia, depois de grande descobri o que era fórceps – de dentro de outro individuo em alguma sala médica no hospital de Ceilândia, cidade com um pouco mais de dezoito anos que havia sido iniciada com o propósito de acabar com as invasões durante a criação da capital do país. O que antes era chamado de Campanha de Erradicação das Invasões, se tornou a RA mais populosa do quadradinho. Brasil se recuperando de uma ditadura, o mundo ainda chorando a guerra recente e dezenas de milhares de coisas aconteceram naquele ano, e eu sem um manual de instrução pra poder entender tudo aquilo.

Lembro de algumas coisas da infância, esses flashes que todo mundo tem. As histórias da família dizem que eu era do tipo atentando, apesar de minhas humildes justificativas. Alguns anos - e professores  reclamando da minha extrema incapacidade de ficar quieto - depois, comecei a perceber que, talvez, eu realmente seja um pouco inquieto. Sem provas concretas ainda. Eu sou o filho do meio, aquele que não é caçula pra receber o dengo e nem o mais velho pra receber o amor da primogenitura, dentro de uma família com cinco onde uma bandeja de iogurte é uma pedra de ouro na geladeira. Meu pai, boa parte do tempo trabalhando construindo sonhos no lago sul ou em algum outro lugar de Brasília mexendo massa e colocando tijolo, enquanto minha mãe tentava não matar três filhos, e eu era o que corria mais risco.

O tempo passou e aprendi cedo que a vida não tem tempo pra esperar ninguém. Fui do tipo que aproveitou bem as fases de moleque. Na escola reprovei porque TDAH era nome de doença venérea e minha dificuldade de acompanhar explicações ou fazer contas junto com meu dom de ficar quieto, me fez acabar estudando com adolescentes mais velhos e piores que eu. Lembro dos que chegavam com os celulares “ganhados” e dos que vendiam produtos ilícitos. Microempreendedores da sarjeta. Menores de idade que, faltavam alguns dias e voltavam gloriosos após sobreviver na detenção infantil. Nada como uma escola organizada pelo Estado pra preparar bem o cidadão pra realidade. Em meio as aulas sem fim de matemática e português, meu mundo girava entre tocar bateria na igreja que meu pai era pastor e amigos que levavam baculejo da policia quase todo dia.

Briguei na rua, fiz curso de modelo, roubaram minha bike com um soco no olho e comecei a ler livros. De manhã ping pong – tênis de mês é coisa de burguês – e de tarde livros sobre famílias sobreviventes do holocausto. Quando terminei os livros de casa, descobri que a escola emprestava, se a gente assinasse um papel e devolvesse depois. Enquanto os dois maiores prédios do mundo desabavam ao vivo diante dos olhos de milhões de pessoas pelo mundo, eu lia a história de Sócrates e sua morte por envenenamento. Não sei vocês, mas aos doze é um pouco difícil entender porque o mundo é assim depois de um “conheça-te a ti mesmo”.

Mudamos de cidade. Saí da CEI e fui pro Coração do Planalto Central, vulgo Planaltina. Uma casa que meus pais compraram - até hoje não sei como – onde passei uns dez anos dormindo em colchoes no chão da sala com a cara no fogão ao lado da porta, dividindo o espaço entre meus irmãos e os pingos de chuva do telhado. Durante essa época continuei lendo em bibliotecas. Por algum motivo, minha capacidade de elaborar bons textos pra idade e realizar boas apresentações me rendeu a boa fama da pessoa desenrolada – junto com a de inquieto. Meu primeiro salário veio de um lote capinado, comprei uma bermuda e um caderno. Meu primeiro milhão. Depois de alguns anos carregando carrinhos de concreto e tirando braquiária da terra senti que era hora de mudar. Fui estagiar em um cartório digitando mais de cento e cinquenta livros com umas duzentas páginas cada, em um computador no canto de uma sala ao lado de uma janela escondida atrás de um armário. A vista era uma torre de telefonia enorme, da qual um colega de classe havia se jogado dias antes finalizando seu ciclo de vida. Depois trabalhei vendendo açaí enquanto cursava canto popular na Escola de Música de Brasília. Nos intervalos das obrigações capitalistas da vida na época, me dedicava ao basquete, teatro, sala de recursos – a gente chamava de superdotados, claro -, livros de leitura corporal e política, passeios solitários e atividades religiosas. Líder de jovens, ministro de louvor, pregador e professor de escola dominical, como eu era fofo. Organizei feira, doação de sangue, toquei em palco e em algumas noites saía de violão pra ficar sentado com alguns moradores de rua conversando e tentando convencer alguns deles a sair de onde estavam. Comecei a cursar Filosofia três vezes e em todas elas tive que escolher entre continuar estudando ou trabalhar. Mas é assim mesmo, as vezes só nos cabe esperar, a vida não está nem aí pro nosso planejamento.

Aquilo que eu vivia no social, ouvia no religioso e lia nos livros me deixou um pouco confuso. Mas quem era eu? O que um repetente da periferia de Ceilândia sabe sobre o mundo? Senti que era hora de mudar e arrumei um trabalho de usar gravata. Como na escola, a capacidade de resolver problemas e boa comunicação me ajudou bastante. Trabalhei em várias empresas, dei treinamento, palestra, quis ser chefe, fiz cursos, ouvi besteira e fui mal valorizado. Mas o sistema sempre foi assim, e não era eu que ia mudar. Pra dar certo a receita era aquela.

Casei, tive filho, comprei moveis novos, viajei, carro zero, casa própria e carteira assinada, bons amigos e uma cama de casal que não deixava meus pés pra fora. Aí um dia despertei. Acordei numa madrugada qualquer e após ir no banheiro, fui na geladeira tomar um gole de leite. Enquanto a luz da geladeira iluminava minha alma, um choro descontrolado me deixou de joelhos com uma garrafa de leite na mão. Eu não sabia parar e nem porque tinha começado. Eu espanei.

Depois de alguns anos, após um processo de divórcio e saídas de emprego, percebi que aquilo não era mais o que eu queria, pode ter sido um dia, mas todo aquele enredo não tinha sido escrito por mim. E é nessas horas que eu digo que mudar pro quarto andar sem elevador tendo que carregar todos os moveis pelas escadas curtas sozinho, não se compara ao esforço da mudança interna. Descobri que a gente nunca para de nascer nessa vida, e em todas as vezes o parto é dolorido e traumático, e se reclamar o ferro esta ai pra ajudar.

Passei fome, peguei chuva com filho no colo, fugi de bandido, dormi na beira de estrada, chorei, gritei, briguei, abri empresa, fechei empresa, amei, odiei e me arrependi de ter escolhido aquele caminho.  Quase morri e já fiquei de cama cinco dias apenas bebendo agua. Teve um dia que percebi que dipirona também da barato depois de algumas gotas, não aconselho. Demorou um tempo pra entender que tudo faz parte do processo e que não existe essa de bom ou mal, a vida é o que é e a gente tem que entender. É difícil perceber na hora, mas se a gente souber passar, talvez de certo. Talvez, porque garantia a gente tem só de morrer.

Mais que um e menos que outros, eu já senti aquele frio na alma que só os abandonados sentem. Eu sofri as injustiças do Estado e vivi seus abusos. Perdi amigos por causa de algumas cédulas de real e espantado com o poder da ganancia convivi com indivíduos dispostos a muito pra ter mais do que eles já tinham em abundância. Me perdi numa cultura religiosa que havia matado muitos com suas boas novas, enfiando espada goela abaixo em quem não aceitasse a benção do deus todo poderoso. Cansei de ser tratado como um número registrado e criado para produzir para alguém, vendendo meu tempo de vida numa máquina empresarial das quais eu discordava de seus métodos de exploração do capital humano. Às vezes eu acho que o fórceps apertou demais minha cabeça.

Tem gente que me chama de doido, eu não os culpo, também acho isso deles. Hoje eu sei que ta todo mundo perdido e a humanidade é um eterno jogo de improviso, onde quem se adapta sobrevive melhor, isso se der sorte de não ser devorado antes.  Um dia meu avô decidiu fugir com o cangaço e hoje cá estou, resultado de infinitos acontecimentos irrelevantes e desconexos. Alguns veem sentido nisso tudo, eu só vejo improviso, sobrevivência. E se for pra ser assim, que seja no mínimo justo com todos que padecem disso chamado Vida.

O destino é a caminhada. Não existe essa de vencer na vida, com o tempo a gente aprende que conseguir respirar bem já é um puta de privilegio.

Hoje, mais amaciado que chão de pasto, depois de algumas falências, morte e experiências um pouco incomuns, entendo o suicídio de Sócrates. Afinal, quem conseguiria viver uma mentira pelo resto da vida?

E ainda tem gente que me chama de vagabundo. Ó as ideia. Quem sabe no próximo nascimento, afinal, o jogo sempre pode virar. 


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