Eu tenho uma alma triste.
Ela riu
- Deixa de ser palhaço. Eu
perguntei um defeito. Você tá me enchendo o saco.
- É sério – reforcei com um
sorriso fraco – estou respondendo sua pergunta.
- Como assim? Eu nunca me senti
tão em paz na vida desde que fiquei perto de você e você vem me dizer que é
triste?
- Sim. Mas isso não me
“entristece”.
Riu novamente
- Tá certo. Então me explica.
Como alguém pode ser triste não se entristecer?
- Tem certeza?
- Sim.
- Ok. Está vendo aquele casal com
uma filha pequena sentada ali na mesa no fundo?
- Sim, vejo.
- Se eu te disser que quando eles
saírem daqui, aquele homem vai estuprar aquela criança e a mulher vai estar na
sala comendo pipoca e vendo uma novela enquanto ouve os gritos da criança no
quarto, o que você sentiria?
- Nossa – fingiu um arrepio – não
gosto nem de pensar. Sei lá. Sentiria ódio, tristeza, angustia, impotência.
Várias coisas. Mas você está sendo exagerado.
- Você acha? Enquanto estamos sentados
aqui, milhares de crianças, meninos ou meninas, estão gritando em seus quartos
pedindo ajuda enquanto são molestadas por parentes ou desconhecidos. Algumas
delas nem gritam mais por socorro pois sabem que esse nunca chegará. Crianças
que são obrigadas a esconderem as marcas do abuso pois sentem medo de perder a
vida ou a família. Ameaçadas a todo instante por seus carrascos e temendo nem
se alimentar mais. Lhe dei o exemplo mais comum e evidente que existe no mundo.
Ainda posso citar as outras milhões de pessoas que não tem acesso a alimento,
luz, agua, educação, segurança e várias outras necessidades básicas a um ser
humano. Posso lhe contar sobre pessoas que nunca conheceram um computador ou
internet. Crianças que nasceram em um país destruído pela guerra e que se
acostumaram a fugir e se esconder. Posso lhe citar a fome no mundo, que atinge
mais pessoas do que você possa imaginar. Nesse exato momento uma mãe esta
julgando qual filho deixa vivo e qual morre pois não tem alimento necessário ou
não pode carregar toda a sua prole par fugir da guerra civil de seu maldito
país. Até agora só citei fome, guerra, estupro e famílias desamparadas. Ainda
posso falar da hipocrisia burguesa que finge se preocupar com o próximo mas não
tem coragem de abrir as portas de suas casas quentes nos dias de inverno. Do
governo mentiroso que mitiga a burrice do povo com pão e circo quando na
verdade nenhum deles quer ver um pobre sair de sua miséria. Minha alma é triste
porque na minha mente e coração a fome, guerra, morte, estupro, dor, tortura,
hipocrisia, falsidade, mentira, destruição e falta de sentido nas coisas vivem
a palpitar e correr em minhas veias.
- Te entendi – falou num tom
pesaroso – mas não adianta pensar nessas coisas pois não vai trazer a solução e
você só vai ficar angustiado.
- Ouvi essa resposta mais vezes
do que gostaria de lembrar. Tem certeza que quer continuar?
- Claro.
- Lembra do exemplo da garota ali
da mesa?
- Impossível esquecer.
- Você acaba de se transformar na
mulher comendo pipoca e vendo novela. Ignorar a realidade pelo simples fato de
não poder mudar o mundo é uma das maiores mentiras inventadas até hoje. O ser
humano criou o mundo com ele é hoje. Mal ou ruim, e a única resposta que temos
para esses assuntos são “não podemos fazer nada”. Ai te pergunto sem querer
ouvir a resposta; “Porque fazemos isso?”. Lhe respondo: Porque queremos ser
felizes acima de tudo. Queremos ter paz. Queremos dormir tranquilos, com nossa
família segura, com nosso alimento a mesa e nossa descendência garantida. O discurso
do “não se pode fazer nada” foi criado para que continuemos cegos a realidade.
Para ignorarmos aquilo que nos faz mal. Eu lhe disse algumas coisas ruins no
mundo que estão acontecendo nesse exato momento. Tenho certeza que isso lhe
trouxe um sentimento ruim. Esse sentimento ruim é o sentimento que a realidade
da vida traz.
- Não entendi.
- Se você tivesse consciência
real e diária sobre os males do mundo, sentiria paz?
- Provavelmente não.
- Nenhum ser humano, fora os
dotados de distúrbios psicológicos, conseguiria viver bem sabendo que seu
parente intimo padece enfermidades assustadoras. E é nesse ponto que chego a
minha resposta; Tenho uma alma triste pois tenho consciência diária da dor do
mundo, não posso fazer nada a respeito e desfaleço com meus iguais.
- Nossa – tomou um gole da bebida
– mas e a parte do “não me entristece”?
- Essa é fácil. Se você esta num
relacionamento onde recebe flores de seu amado, tem abrigo, alimento e uma
família, porém seu parceiro possui várias mulheres as escondidas e essas
mulheres passaram doenças horríveis para ele e por conseguinte ele irá passar
para você. É preferível que alguém lhe conte as aventuras de seu “amor” ou você
prefere viver a vida boa de uma família feliz?
- Evidente que me contem.
- Ótimo. Após lhe contarem você
perderá casa, família, paz, estabilidade e uma vida que era relativamente boa.
Todo casamento que era uma mentira travestida de felicidade irá por água
abaixo, porém você estará livre das doenças e das falsas promessas de amor.
- Sim.
- Você não teria mais nada na
vida, apenas sua vontade de viver, estaria livre de mentiras e falsas
promessas. Você seria plena.
- Talvez.
- Você não teria nada em que
acreditar, mas estaria livre para continuar. Não teria nada, mas não ficaria triste
pois sabe que viver a verdade saudável é melhor que viver uma mentira doente.
- Verdade.
- Agora lhe pergunto; Quantos
casais amigos seus vivem um relacionamento doentio e que você sabe que não esta
certo?
- Viiixi... se eu for contar...
- Assim também é na vida. Todos
nós sabemos que não esta certo, mas ninguém quer encarar a verdade porque a dor
da separação, a dor de largar algo que nos faz “tão bem” é absurdamente
horrível. Então preferimos conviver com as doenças e o falso amor a abrir os
olhos pra realidade.
- Acho que te entendo.
- Não. Não entende – agora eu que
ri – mas respeito seu sentimento de empatia.
- Porque tanta convicção?
- Não é a primeira nem última vez
que digo o que acabei de dizer. Não quis ser grosso, mas isso é como música. Algumas
pessoas conseguem descobrir notas, categorizar estilos, explanar a origem de
tal arranjo e vez ou outra tocar exatamente igual. E existem outras pessoas que
não tem nenhuma habilidade para decifrar um acorde, porém apreciam uma canção
como se a tal fosse uma nuvem sendo desmanchada no céu enquanto se observa
deitado na grama. Como se seus olhos pudessem ver as asas de um beija flor
batendo em câmera lenta. Infelizmente é assim que a vida anda. Melhor mudarmos
de assunto.
- De maneira nenhuma. Achei interessante
seu jeito de ver as coisas, mas eu não acredito que se possa viver em paz
pensando em tudo isso.
- Paz?
- Sim. Entendi porque sua alma é
triste, mas é impossível pensar em tudo isso e viver bem.
- Você esta certa.
- Como se vive então?
- Vivendo a paz alheia.
- Nem preciso pedir pra explicar
né...
- No começo de nossa conversa
você disse que nunca se sentiu tão em paz desde que começou a conversar
comigo...
- Sim.
- É isso. Não sou eu que lhe
trago paz, apenas a tiro de dentro de você. Se você gostou de tudo até agora é
porque gostou de tudo que tem em você.
- Para com essa baboseira – riu e
arrumou o cabelo – fala sério.
- Você riu de suas próprias
histórias, se seu próprio mundo e eu pude “respirar” com sua realidade. É assim
que eu vivo - O garçom chegou com a conta e ficou ao lado da mesa - Vivo de
ilusões de felicidade.
- Desculpe senhor, o que disse? –
indagou o garçom.
- Nada, estava falando com minha
amiga – ri descontraído lhe entregando o cartão.
- Amiga? – insistiu ele.
- Sim meu jovem. Essa senta... –
uma cadeira vazia a minha frente e apenas um prato na mesa – você pode me
responder uma questão meu jovem?
- Claro senhor.
- Já se pegou tentando
fugir de sua triste realidade?
Ele me olhou confuso.
- Senhor, me desculpe mas não
entendi.
- Não se desculpe, você já
respondeu. Obrigado e bom trabalho.
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