No ano que eu nasci o Muro de
Berlin vinha abaixo. No mesmo dia o Botafogo fazia história contra o Flamengo
no Maracanã ganhando de um a zero, depois de um jogo tenso na final estadual. Em
Pequim, um homem parava diante quatro tanques de guerra no meio da Praça da Paz
Celestial, eternizado numa cena que inspirou milhares contra o regime chinês da
época. O vídeo mostra ele sendo retirado por dois soldados, nada mais. Nunca mais
localizaram o rebelde desconhecido.
O mundo girava intensamente,
ainda com uma pequena imagem embaçada de nosso futuro tecnológico e avanços
digitais, quando fui “puxado a ferro” – como dizia minha mãe, até que um dia,
depois de grande descobri o que era fórceps – de dentro de outro individuo em
alguma sala médica no hospital de Ceilândia, cidade com um pouco mais de
dezoito anos que havia sido iniciada com o propósito de acabar com as invasões durante
a criação da capital do país. O que antes era chamado de Campanha de Erradicação
das Invasões, se tornou a RA mais populosa do quadradinho. Brasil se
recuperando de uma ditadura, o mundo ainda chorando a guerra recente e dezenas
de milhares de coisas aconteceram naquele ano, e eu sem um manual de instrução pra
poder entender tudo aquilo.
Lembro de algumas coisas da infância,
esses flashes que todo mundo tem. As histórias da família dizem que eu era do
tipo atentando, apesar de minhas humildes justificativas. Alguns anos - e
professores reclamando da minha extrema
incapacidade de ficar quieto - depois, comecei a perceber que, talvez, eu
realmente seja um pouco inquieto. Sem provas concretas ainda. Eu sou o filho do
meio, aquele que não é caçula pra receber o dengo e nem o mais velho pra
receber o amor da primogenitura, dentro de uma família com cinco onde uma bandeja
de iogurte é uma pedra de ouro na geladeira. Meu pai, boa parte do tempo
trabalhando construindo sonhos no lago sul ou em algum outro lugar de Brasília mexendo
massa e colocando tijolo, enquanto minha mãe tentava não matar três filhos, e
eu era o que corria mais risco.
O tempo passou e aprendi cedo
que a vida não tem tempo pra esperar ninguém. Fui do tipo que aproveitou bem as
fases de moleque. Na escola reprovei porque TDAH era nome de doença venérea e
minha dificuldade de acompanhar explicações ou fazer contas junto com meu dom
de ficar quieto, me fez acabar estudando com adolescentes mais velhos e piores
que eu. Lembro dos que chegavam com os celulares “ganhados” e dos que vendiam
produtos ilícitos. Microempreendedores da sarjeta. Menores de idade que,
faltavam alguns dias e voltavam gloriosos após sobreviver na detenção infantil.
Nada como uma escola organizada pelo Estado pra preparar bem o cidadão pra
realidade. Em meio as aulas sem fim de matemática e português, meu mundo girava
entre tocar bateria na igreja que meu pai era pastor e amigos que levavam
baculejo da policia quase todo dia.
Briguei na rua, fiz curso de
modelo, roubaram minha bike com um soco no olho e comecei a ler livros. De manhã
ping pong – tênis de mês é coisa de burguês – e de tarde livros sobre famílias sobreviventes
do holocausto. Quando terminei os livros de casa, descobri que a escola
emprestava, se a gente assinasse um papel e devolvesse depois. Enquanto os dois
maiores prédios do mundo desabavam ao vivo diante dos olhos de milhões de
pessoas pelo mundo, eu lia a história de Sócrates e sua morte por
envenenamento. Não sei vocês, mas aos doze é um pouco difícil entender porque o
mundo é assim depois de um “conheça-te a ti mesmo”.
Mudamos de cidade. Saí da CEI e
fui pro Coração do Planalto Central, vulgo Planaltina. Uma casa que meus pais compraram
- até hoje não sei como – onde passei uns dez anos dormindo em colchoes no chão
da sala com a cara no fogão ao lado da porta, dividindo o espaço entre meus irmãos
e os pingos de chuva do telhado. Durante essa época continuei lendo em
bibliotecas. Por algum motivo, minha capacidade de elaborar bons textos pra
idade e realizar boas apresentações me rendeu a boa fama da pessoa desenrolada –
junto com a de inquieto. Meu primeiro salário veio de um lote capinado, comprei
uma bermuda e um caderno. Meu primeiro milhão. Depois de alguns anos carregando
carrinhos de concreto e tirando braquiária da terra senti que era hora de
mudar. Fui estagiar em um cartório digitando mais de cento e cinquenta livros
com umas duzentas páginas cada, em um computador no canto de uma sala ao lado
de uma janela escondida atrás de um armário. A vista era uma torre de telefonia
enorme, da qual um colega de classe havia se jogado dias antes finalizando seu
ciclo de vida. Depois trabalhei vendendo açaí enquanto cursava canto popular na
Escola de Música de Brasília. Nos intervalos das obrigações capitalistas da
vida na época, me dedicava ao basquete, teatro, sala de recursos – a gente chamava
de superdotados, claro -, livros de leitura corporal e política, passeios solitários
e atividades religiosas. Líder de jovens, ministro de louvor, pregador e
professor de escola dominical, como eu era fofo. Organizei feira, doação de
sangue, toquei em palco e em algumas noites saía de violão pra ficar sentado
com alguns moradores de rua conversando e tentando convencer alguns deles a
sair de onde estavam. Comecei a cursar Filosofia três vezes e em todas elas
tive que escolher entre continuar estudando ou trabalhar. Mas é assim mesmo, as
vezes só nos cabe esperar, a vida não está nem aí pro nosso planejamento.
Aquilo que eu vivia no social,
ouvia no religioso e lia nos livros me deixou um pouco confuso. Mas quem era
eu? O que um repetente da periferia de Ceilândia sabe sobre o mundo? Senti que
era hora de mudar e arrumei um trabalho de usar gravata. Como na escola, a capacidade
de resolver problemas e boa comunicação me ajudou bastante. Trabalhei em várias
empresas, dei treinamento, palestra, quis ser chefe, fiz cursos, ouvi besteira
e fui mal valorizado. Mas o sistema sempre foi assim, e não era eu que ia
mudar. Pra dar certo a receita era aquela.
Casei, tive filho, comprei
moveis novos, viajei, carro zero, casa própria e carteira assinada, bons amigos
e uma cama de casal que não deixava meus pés pra fora. Aí um dia despertei. Acordei
numa madrugada qualquer e após ir no banheiro, fui na geladeira tomar um gole
de leite. Enquanto a luz da geladeira iluminava minha alma, um choro
descontrolado me deixou de joelhos com uma garrafa de leite na mão. Eu não sabia
parar e nem porque tinha começado. Eu espanei.
Depois de alguns anos, após um
processo de divórcio e saídas de emprego, percebi que aquilo não era mais o que
eu queria, pode ter sido um dia, mas todo aquele enredo não tinha sido escrito
por mim. E é nessas horas que eu digo que mudar pro quarto andar sem elevador
tendo que carregar todos os moveis pelas escadas curtas sozinho, não se compara
ao esforço da mudança interna. Descobri que a gente nunca para de nascer nessa
vida, e em todas as vezes o parto é dolorido e traumático, e se reclamar o
ferro esta ai pra ajudar.
Passei fome, peguei chuva com
filho no colo, fugi de bandido, dormi na beira de estrada, chorei, gritei,
briguei, abri empresa, fechei empresa, amei, odiei e me arrependi de ter
escolhido aquele caminho. Quase morri e já
fiquei de cama cinco dias apenas bebendo agua. Teve um dia que percebi que
dipirona também da barato depois de algumas gotas, não aconselho. Demorou um
tempo pra entender que tudo faz parte do processo e que não existe essa de bom
ou mal, a vida é o que é e a gente tem que entender. É difícil perceber na
hora, mas se a gente souber passar, talvez de certo. Talvez, porque garantia a
gente tem só de morrer.
Mais que um e menos que outros,
eu já senti aquele frio na alma que só os abandonados sentem. Eu sofri as
injustiças do Estado e vivi seus abusos. Perdi amigos por causa de algumas cédulas
de real e espantado com o poder da ganancia convivi com indivíduos dispostos a
muito pra ter mais do que eles já tinham em abundância. Me perdi numa cultura
religiosa que havia matado muitos com suas boas novas, enfiando espada goela
abaixo em quem não aceitasse a benção do deus todo poderoso. Cansei de ser
tratado como um número registrado e criado para produzir para alguém, vendendo
meu tempo de vida numa máquina empresarial das quais eu discordava de seus métodos
de exploração do capital humano. Às vezes eu acho que o fórceps apertou demais
minha cabeça.
Tem gente que me chama de doido,
eu não os culpo, também acho isso deles. Hoje eu sei que ta todo mundo perdido
e a humanidade é um eterno jogo de improviso, onde quem se adapta sobrevive
melhor, isso se der sorte de não ser devorado antes. Um dia meu avô decidiu fugir com o cangaço e
hoje cá estou, resultado de infinitos acontecimentos irrelevantes e desconexos.
Alguns veem sentido nisso tudo, eu só vejo improviso, sobrevivência. E se for
pra ser assim, que seja no mínimo justo com todos que padecem disso chamado
Vida.
O destino é a caminhada. Não existe
essa de vencer na vida, com o tempo a gente aprende que conseguir respirar bem já
é um puta de privilegio.
Hoje, mais amaciado que chão de
pasto, depois de algumas falências, morte e experiências um pouco incomuns,
entendo o suicídio de Sócrates. Afinal, quem conseguiria viver uma mentira pelo
resto da vida?
E ainda tem gente que me chama
de vagabundo. Ó as ideia. Quem sabe no próximo nascimento, afinal, o jogo
sempre pode virar.
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