La estava ele, jogado no sofá olhando para o teto como
sempre fazia quando chegava do trabalho. Sua rotina era sempre a mesma, para um
homem solteiro na faixa dos seus trinta e morando sozinho, o aconchego do seu
lar era tudo que ele queria o dia todo. Sua
vida era boa na medida do possível. Ficou ali alguns segundos, quieto,
repensando tudo que ocorreu desde que o sol apontou no horizonte, nada demais. Lembrou
de um detalhe fútil que vira mais cedo de uma criança pedindo esmola. Respirou fundo,
esfregou as duas mãos no rosto preparando-se para levantar e pensou, “Deus
podia ajudar essas pessoas”.
Seu pensamento nem terminara de ser finalizado e ouviu a
descarga do banheiro logo ao fim do corredor. Levantou num pulo assustado já pensando
nas mil maneiras que um assassino poderia ter entrado na sua casa e ter sido
abusado o suficiente ao ponto de antes de levar seus pertences, dar uma pausa
para suas necessidades básicas. Fez um calculo rápido de quanto tempo demoraria
para pegar a faca na gaveta da cozinha. Não ia ser difícil, era uma cozinha
americana feita sob medida para seu apartamento onde o acesso a sala era fácil para
deixar as pessoas mais próximas nas festas e jantares que sempre planejava.
A porta se abriu e antes que desse tempo, viu um homem bem
vestido com calça jeans azul, allstar branco e uma camiseta xadrez dobrada ate
os cotovelos secando suas mãos na toalha de rosto azul que ganhara numa festa
da firma. Surpreendido, pois não esperava ver tal imagem, ficou ali congelado
observando sem saber ao certo se corria ou se oferecia um café.
- Boa noite meu jovem – largou a toalha no chão do corredor
e veio com as mãos estendidas e um sorriso no rosto – prazer te conhecer.
Sem saber ao certo o que estava acontecendo ali, estendeu a
mão e retribuiu o gesto. Ainda estava parado no centro da sala observando seu
visitante um tanto abusado se jogar no sofá de couro e afundar em quatro mil
reais de puro descanso, pelo menos era o que a loja havia lhe dito.
- Quem é você? – perguntou olhando ao redor tentando entender
a situação.
- Eu? Como assim que sou eu!? – o homem parecia um pouco
consternado – isso é lá coisa que se diga para alguém da minha patente? –
levantou e foi em direção a cozinha.
- Patente? Você invadiu a minha casa e usou meu... – deu um
passo tímido ao ver seu visitante abrir a geladeira e pegar um vinho tinto – você
é louco? O que você esta fazendo?
- Meu caro, evitemos os arrodeios – encheu um copo de vinho,
bebeu num gole só, suspirou com um prazer inebriante – pode me chamar de Deus. –
e voltou a encher o copo.
O de costume não vou contar aqui. É de se saber que na
presença do Deus de todo o universo, foi pedido provas materiais da veracidade
dos fatos. Questionamentos sobre porque a forma visual tão descolada e todas
elas foram dadas. Aquele visitante apresentou provas físicas e visuais
suficientes para que sua autenticidade não fosse mais questionada. Após um
longo dialogo costumeiro de todos que se deparam diante de Deus, e Ele, ainda
com sua garrafa de vinho e sua taça sempre cheia sentou-se no sofá ao lado
daquele morador abismado e fascinado com sua presença.
- Não sabia que Deus era tão jovem.
- A sabedoria só se encontra na velhice? E alem do mais só
tomei essa forma para facilitar sua recepção.
- Se quisesse facilitar minha recepção poderia ter começado
batendo na porta e não dando descarga numa casa onde mora apenas uma pessoa.
- Mas ai eu ia perder o timing - deu uma piscada e bebeu
mais uma taça.
- Também não sabia que Deus podia beber.
- Meio irracional partindo do principio que fui Eu que tive
a ideia das uvas... e dos canaviais.
- Ok. Esta um pouco confuso. Porque logo na minha casa? Tanta
gente melhor e mais merecedora da sua visita, e o Senhor veio usar logo meu
banheiro.
- Ora, porque você tinha uma conversa a ser discutida. As pessoas
passam horas repetindo algumas palavras, fazem mil sacrifícios, seguem e
milhares de rituais e esquecem que quando você quer falar com alguém, basta
chamar. Tudo muito simples. – bebeu mais um copo – não as julgo – soltou um
riso malicioso – não agora, se é que você me entende.
- Mas eu também não chamei, apenas pensei.
- Será? Vamos fazer o seguinte; vou lhe dar direito a
algumas perguntas, evidentemente não darei a resposta pura como são pois você jamais
seria capaz de compreender, mas pensaremos juntos num entendimento que mais lhe
caiba e ajude sobre seu “apenas pensei”.
- Esta me dizendo que vai me dizer o sentido da vida?
- Ah nem, seja mais criativo – se ajeitou no sofá enchendo o
copo – pense bem, você esta diante de Mim, pense em algo que seja útil e
verdadeiro para sua vida. Mesmo que eu te diga o sentido da vida e você escreva
um livro sobre isso, ninguém vai acreditar e sua noite foi desperdiçada. O que você
precisa saber hoje meu caro? Pense sobre o que realmente importa pra você.
Uma pausa. Ele olhava para aquele que mais cedo se
apresentara como Deus, bebendo suas infinitas taças de vinho e pensava o que
uma pessoa conversaria se o Criador de tudo e todos estivesse tomando vinho,
sentado no sofá e vestido como um play boy de classe media alta. Passou a mão
no cabelo, se acomodou e decidiu;
- Qual a religião que tem o deus certo? - o olhar de
desapontamento divino era claro – o que
foi? É uma pergunta útil para mim pois a resposta vai me dizer como devo
proceder para ter uma vida correta.
- Pergunte isso para
um Hindu e sabe qual reposta vai ter? Todas. Todos os deuses tem sua função no
cosmo e na vida das pessoas. Você me pergunta isso porque mora num pais
colonizado por uma religião que prega um único deus. Refaça esse questionamento
para um indiano e ele ira tratar o seu deus como mais um dos dele. Acredito que
a pergunta mais lógica é se um único Deus é mil ou se mil é um Deus.
- Agora entendi
quando falou que não ia me dar respostas.
- Parece cliche, mas as respostas sempre foram ditas – bebeu
mais uma taça e levantou a garrafa para conferir o restante do conteúdo.
- Tenho água na geladeira se o vinho acabar.
- A piada foi boa, mas ainda tenho o suficiente aqui –
encheu novamente o copo.
- Acredito que o álcool não faça efeito não é?!
- É seu terceiro questionamento inútil, já estou começando a
me arrepender de ter vindo – colocou os pés na mesa de centro e olhou as horas
no relógio.
- Tudo bem, Tudo bem – sentou na ponta do sofá com um ar curioso
– lembro-me de ter ido a igreja uma vez, e ouvido que “Deus se arrependeu de
ter feito o homem”. Você acabou de falar em arrependimento, mas não é sobre
isso exatamente que quero perguntar e sim sobre um sentimento que pode recorrer
desse “arrependimento”. Não duvido da sua bondade, evidente, mas e da sua
maldade? O Senhor, Deus, também é mal ?
- De acordo com sua definição, sim – não ligou muito para a ideia
e virou mais um copo de vinho
- Esta me dizendo então que a culpa de todo mal do mundo é
do Senhor?
- Meu jovem, porque o espanto? Pense comigo; fui competente
suficiente para criar a complexidade e a infinidade das partículas do universo,
e não teria controle sobre a minha criação? Se mil passam fome foi porque
passou pela minha total aprovação, se um teve capacidade de matar milhões, foi
porque eu autorizei que assim procedesse. Na visão humana, que digo com humildade,
é um tanto pequena – bebeu mais uma taça – eu seria cruel, mas sinto
desaponta-lo e dizer que grandes poderes requerem grandes sacrifícios.
- Homem aranha.
- Adoro esse filme, os primeiros foram ruins, mas depois
ficou melhor – tirou o pé da mesa e encheu a taça novamente – você não tem
filhos, mas pense comigo; um pai que proíbe o seu filho de ter contato com
certos amigos, ou que o castiga retirando algo que ele gosta, ou que vez em
quando não o deixa ir para certos lugares ate que suas notas melhorem ou que
suas atitudes dentro de casa se ajeitem – bebeu a taça cheia – é um pai mal? Talvez.
Do prisma do pobre filho que tem a limitação da juventude, seu pai é um ser
cruel que pouco se importa com sua felicidade. Um patrão de uma grande empresa,
a sua por exemplo, que manda embora metade de seus funcionários para que a
empresa continue funcionando e em plena saúde financeira, é um patrão insensível?
- São coisas pequenas quando falamos dos males do mundo.
- Pequenas? Quando se trata de maldade não existem miúdos e graúdos.
A questão é a quantificação do que os seus olhos veem e o que não veem. Todos os
dias, milhares de mini deuses tomam decisões que prejudicam milhares de outras
pessoas, e sobre todos eles tenho total controle – virou o resto de vinho na
taça e olhou pelo gargalo surpreendido como acabou tão rápido – o que me
surpreende ainda é pensarem que poderia existir um deus que estaria observando
toda essa maldade do mundo e ficaria indiferente sendo apenas um espectador da
sua própria criação. Seu deus é um imbecil, e seu vinho acabou – jogou o resto
de vinho da taça no rosto de seu ouvinte.
Acordou num susto, sentado no sofá com uma taça vazia em uma
mão e a garrafa de vinho caída perto da mesa de centro. A televisão estava
ligada, Peter Parker beijava Marie Jane e se despedia.